segunda-feira, 28 de junho de 2010

BEIJO

Fecha o livro. Na capa as letras se juntam: "Esperando Godot". Uma ladainha qualquer na televisão. Esgasgara na última página. A janela abafa um pouco o som dos apitos, buzinas. Das máquinas que cospem a manhã.

- Vamos, acorde!

Bebidas, discussões, planos: "Vamos mudar o mundo". No barzinho, uma rodada, outra... "Não, eu acho que o sistema"... O que foram aquelas palavras, aquela euforia, aquela verdade, aquela vontade? No fundo o que sempre existiu era aquele vazio. Um quarto fechado com uma TV ligada. E alguém ao seu lado que não quer acordar.

Paredes brancas e uma colcha branca e pesada. Desliga a TV. Vive aquele silêncio por alguns instantes. Rádio. Caminha pelo quarto, os pés descalços. Vocal de Cazuza: "E aquele garoto que ia mudar o mundo, mudar o mundo...". Observa os pés descalços:

- Vamos, acorde. Me diz que a gente pode. Acorde. Ah, me deixa gozar de novo aquela potência. Ou será que ela só existiu com os pés na água, caminhando na praia, sobre a lua cheia? Ou de madrugada, numa mesa de bar?

"Ideologia, eu quero uma para viver". Aperta violentamente o botão que desliga o rádio. Tenta chorar. Não consegue. Silêncio. Pelada, pela janela tenta viver a realidade, sentir a realidade. Lembra-se do dia anterior, no bar, as pessoas discutem uma reportagem, a vida no tráfico... a vida real. Tenta abrir as janelas e simplesmente não consegue.

Tem uma vontade súbita de escrever, começa a imaginar frases inteiras. Pega o papel e a caneta e simplesmente não sai frase nenhuma. Tenta chorar e não consegue. Silêncio. Ri. Ri. Ri. "Será que eu sou um monstro ou isso é ser uma pessoa?". Parodia Clarisse Linspector. Tem vontade de citar tantos nomes. Pessoas, escritos, músicas, filmes.... Ri.

- Vamos acorde. A vida está acontecendo agora. Tudo o que discutimos toma rosto agora. Toda a nossa vontade deveria ser hoje, agora. Mas você dorme e tudo é essa parede branca.

"Essa papo meu tá qualquer coisa.... Esse papo seu já tá de manhã". Rádio. Tenta chorar e não consegue. Volta para o livro. Lê as últimas frases. "Vamos nos enforcar amanhã então". Niilismo. Ideologia. Morte das ideologias. Uma pessoa dormindo ao seu lado. Sem mais. Meio dia.

Ele - Arcodada já? É cedo.

Ela - Não é não.

Olha para o livro na mão dela: "Becket!" Lembra-se da palestra, sobre sei lá o que, que têm na faculdade.

Ele - Vamos embora?

Ela - Não podemos!

Ele - Por quê?

Ela - Estamos esperando Godot.

Ele - Ah, é! (Ri)

Beijo. E cai o pano.

2006

Nenhum comentário:

Postar um comentário