quarta-feira, 30 de maio de 2012

folha em branco


A menina olha-se no espelho. Como diversas vezes já tinha se olhado. Lá estava, cercada pelas paredes brancas, tentando encontrar no espelho aquilo que chamava EU – que nós chamaríamos ELA. Havia um quê de estranheza naquela imagem refletida no espelho. Imagem que não dizia sobre os seus desejos, seus medos e as suas dores.
            Terminava de se arrumar. Não eram seus aqueles traços ao redor do nariz. Nossa, como o seu nariz era engraçado, nunca tinha percebido aquele osso! Não que fosse muito saltado, mas ele estava ali, pendendo um pouco para o lado direito – ou esquerdo, afinal as imagens no espelho são invertidas.
Riu-se porque lembrou de Pirandello. Lembrou do pobre – pobre? – homem que descobriu-se um, nenhum e cem mil depois de perceber que tinha também traços não uniformes no rosto. Mas afinal, era isso mesmo que fazia, parafraseava pessoas quando escrevia.
Perguntou-se porque o rosto. Epifania. Seu rosto era uma página em branco. Podia ver os seus dedos, as suas mãos, seus braços, seus ombros, toda a sua barriga, seus seios, seu umbigo, as suas pernas e os seus pés. Mas quando tentava materializar o seu rosto, fora do alcance de um espelho, via-se diante de um vazio.
O rosto que tantos usavam para definir a personalidade de alguém, não lhe pertencia. Quis escondê-lo enquanto andava na rua. Irritava-a todos poderem vê-lo, perceber as suas alterações de humor, menos ela. Todos o liam, menos ela. Interpretavam-no. E quantos não falavam dos seu sorriso, que só existia para ela na frente de um espelho, momento em que não parecia ser seu.
Página em branco. Passou a mão tentando completar algum traço. Tentou cuidar de sua imagem. Saiu de casa. Andou por entre as ruas de todo o dia. “Seu Pessoa, quanto tempo!”. Pensou no que o sorriso dele lia sobre os seus olhos. Quis lhe perguntar, mas escondeu-se atrás das pessoas na rua.
Lembrou-se da música rolando à luz da lua cheia – há sempre algo do dia anterior que nos volta a tona enquanto seguimos nosso caminho. Tão bonita a lua! E pessoas, tantas pessoas em meio de burburinhos inaudíveis. Elas também interpretaram o seu rosto? Tinham feito tantas perguntas: Quem é você?, Me fale um pouco sobre você. Riu-se. Riu-se. Será que aquelas pessoas também não poderiam dizer quem era olhando o seu rosto? Incômodo. Como é que ela ia responder SOU?
Chegou à sala de aula. Novamente incômodo. Outra vez quis esconder o seu rosto. Será que podia de novo parafresear Pirandello e parar na frente da porta e estranhar o EU – ou o dito ELA – que encontraria nos olhos das pessoas que ali estavam? Riu-se novamente por lembrar daqueles rostos que lhe diziam: Você é paciente.
Vertigem. Nunca fora paciente. Não que fosse grande coisa atribuirem-lhe paciência. Nem que isso determinasse quem era. Mas em algo tão simples e tão banal como tal afirmação repetida por todos ali, não havia nem um pingo de EU – ELA. Vertigem. A sua amiga de infância gargalhava quando ela repetia o que tais pessoas lhe diziam: Você é a pessoa mais impaciente que eu conheço.
Começou a pensar nos diversos eu’s que conhecia. Sentia-se uma com cada uma daquelas pessoas. Cobrou-se a resposta: Quem é você?. Já haviam lhe dito da sua tal essência. Do quanto era inteira. Vertigem. Quis procurar as tais respostas. Eu sou bla, bla, bla, bla, bla. Pronto. Construiu com palavras a tal máscara “quem sou eu”.
Quis então brincar de ver os outros. Começou a jogar. Baile de máscaras. Achou engraçado ver que haviam tantas máscaras construídas com palavras ali. E mais ainda ouvir as pessoas falando de si. Elas tentavam controlar a página em branco do seu rosto com palavras. Bonito para o seu nariz, amoroso para a sua boca. Começou a ver letras nos brancos dos olhos, nos pelos das sombrancelhas e nas pontas das orelhas.
O que? As máscaras que ele construíra era diferente da que ela via nele. Começou, então, a construir ela a máscara das pessoas. E elas se diferenciavam tanto das máscaras que as pessoas se escolhiam. Que, a propósito, eram totalmente diversas das outras que os terceiros lhe atribuiam. Epifania. Vertigem. É assim também comigo?
Teve medo de agir. Sentiu-se presa às suas ações. Sabia que a liam e a classificavam por qualquer passo para o lado que dava. Sabia que haviam várias máscaras sobre o seu rosto. Construídas por palavras, por ações e pelas consciências dos outros. Começou a, freneticamente, tentar tirá-las. Até mesmo a máscara que ela atribuira a si, causava muita coceira.
E, depois que tirasse todos aqueles rostos, o que lhe sobraria? Quem sou eu? Qual a minha essência? Qual a tal palavra que pode me dizer quem sou?. Nome. O nome sou eu? Mas haviam tantos com o mesmo nome e outros tantos que escreviam o seu nome errado (haviam até aqueles que cismavam que escreviam certo, e que era ela não sabia escrever o seu próprio nome).
Quis construir qualquer coisa que lhe dissesse que era inteira. Mas começou a olhar à sua volta e duvidar do nome das coisas. De todos os nomes já pré-estabelecidos. E se a mesa se chamasse cadeira? Ou melhor, se se chamasse peteridófilas? (Sempre gostou daquelas palavras engraçadas de biologia, mas nunca gostou de aplicá-las onde estavam).
E se ela não tivesse palavras? E se ela pudesse não ser inteira? Vertigem. Sentiu-se por um instante pisando em nada. Tendo que pensar em cada passo seu, para não despencar. E se ela não fosse paciente, se não fosse impaciente, se não fosse bonita, se não fosse feia, nem inteligente? O que sobrava? Se ela resolvesse que ela não tinha nenhuma palavra que a segurasse e a determinasse?
Ela pensou que se resolvesse ser, por exemplo, inteligente, ela teria que sê-lo sempre. E como poderia prever qualquer forma de ser sempre igual? E não poderia ser diferente nenhum momento? Teve de novo medo de agir e de agir diferente do que era. Mas ERA?
Algo pulsava e ela existia. Ela existia mas não era uma palavra. Teve medo disso. Como Rontequim (tudo bem, permitiu-se parafrasear Sartre) ao descobrir que as coisas eram maiores que as palavras, ou melhor, que existiam sem as palavras. E que a existência era absoluta e absurda. Porque não podia ser controlada e nem definida com a priori’s.
Porque existiam? Não havia razões de ser e nem mesmo necessidade para existir. Não podia explicar que ela existia para ser boa ou má e representar tal papel na vida. Estava lá e nem mesmo era inteira. Tentou de novo controlar tudo isso com linguagem. Quis dormir e esquecer-se.
Liberdade? Era então livre? Não! Quis construir uma escultura para si. Quem sabe fixar-se uma forma qualquer. Não pôde. A existência era, enfim, absurda. Deus! Deus talvez pudesse explicar os seus atos. Ou a sociedade. Sim, ela era porque.... porque tinha que ser assim na sociedade e não poderia fazer de outro jeito. Porque... porque.. Quis ser má-fé. Quer dizer que os outros poderiam justificar as suas ações.
Vertigem. Não sou, estou. Não havia no fundo de si qualquer máscara verdadeira. Qualquer palavra final que batesse o martelo. Não havia como encontrar o que verdadeiramente era, porque verdadeiramente não era nada. E ao mesmo tempo, verdadeiramente, podia ser qualquer coisa. Ou melhor, era potencialmente tudo.
Verdadeiramente? Seria verdadeiro dizer qualquer palavra de si, já que ela não seria para sempre essa palavra? Estava livre das fórmulas. E agora? Dormir. Novamente tentar fugir de si. Não podia. Seu coração lembrava-se constantemente de que ela existia. TUM-TUM TUM-TUM TUM-TUM.
Potência. Engraçado pensar em si como potência. Pensar em si como algo que só existe no presente e que se constrói e se destrói a cada passo. E saber que era só ela que era responsável por si. Tinha medo de ser livre.
Sem nem mesmo ter percebido, já estava longe da sala de aula. Entrara no metrô. E começou a olhar para aqueles anônimos. Tentou brincar com eles. De repente o OUTRO lhe incomodou. Porque também era livre. E a sua liberdade confrontava-se com a da pessoa que estava do seu lado no metrô: ela não podia deitar-se no banco.
Novamente as máscaras. Os outros também eram livres e também podiam brincar com ela. Ditar-lhe quem ela era. O baile de máscaras ainda existia, mesmo ela sendo só potência. E o outro ser só potência. Era quase uma luta para ver quem construia primeiro a máscara de palavras para o outro. Para controlar o outro, antes que o outro a controlasse. Era difícil assim, ser tudo aquilo que quisera ser. Já que tinha alguém ou muitos alguéns tão livres como ela.
Como era então responder, em meio à essa luta: quem era? O que era estar “nuzinhos como minhoca”. Era resumir-se ao presente e às ações? Acreditou que sim. Que quando agia construia para si uma EU ou melhor várias ELAS já que cada um interpretava diferentemente as suas ações. Ou várias EU’s e várias ELAS’s já que era presente e não fixava-se.
Descobriu, depois de tudo, que só existia se o outro a visse. Caso contrário, era completamente sozinha. Mas que não podia ditar para o outro o seu um (escolhido ou ilusoriamente acreditado). Que os outros lhe faziam cem mil, de acordo com as leituras que tinham dela. É, o inferno são os outros! Mas que talvez fosse mesmo nenhuma, já que fixar-se seria morrer em vida.
Era potência, mas era controlada, uma vez que todos eram livres e potências pulsantes. E o baile de máscaras continuava. A realidade não lhe deixava ser toda a sua potência. Entendeu, então, porque era necessário suicidar-se filosoficamente. Porque não podia continuar sendo uma (ou fingindo ser uma) depois de saber que pulsava.
Depois de saber, que por mais que pré-estabelecesse algo, não poderia sê-lo simplesmente. Depois de saber que o ser era um pedaço do que queria ser e uns pedaços do que os outros liam. Depois de saber que era livre, mas que esbarrava com outras liberdades.
E saber que sua potência encontrava-se com um mundo real, onde bombas caiam, apesar de sua liberdade. Onde estava fadada a um cotidiano absurdo. A uma falta de linguagem absurda. A absurdas pessoas tentando escravizarem-se. Era nesessário optar pela consciência.
Então lhe pediram que escrevesse sobre o absurdo. Lhe pediram que falasse sobre Sartre, Camus, Becket, Rontequim, Godot, mal entendido, Paul, suicídio filosófico, Sísifo, Stelle, mortos sem sepultura, náusea, peste, Pirandello, Garcin, Marrie e máscaras. Pensou em escrever sobre o que tinha ficado nela de cada um desses autores. Uma vez que ela vivia num baile de máscaras, ações, verdades e tentativas de palavras e inteirezas. Tinha sido pulsante lendo Um, nenhum, cem mil. Já que estava, e não era.
Mas ela não conseguia descrever-se em primeira pessoa. É, só podia ser afastando-se de si. Só podia falar palavras de si, se olhasse no espelho e visse a página em branco preenchida – mesmo que não parecesse com o EU. Quis então tirar de contexto e citar Affonso Romano de Sant’Anna: “Página em branco onde eu escrevo, único espaço de verdade que me resta”.
Pensou na analogia que faria entre a página em branco e o ser enquanto potência. O rosto como página em branco e a máscara construída com palavras – por si e pelos outros. As palavras e as ações que não voltam. Pela atribuição de significados e pelo preencher de essências que fixavam uma forma morta.
Pensou até em resumir: Página em branco onde me escrevem – e eu me escrevo, único espaço de verdade que me resta. Ou restava.
Achou que seria melhor suicidar-se filosoficamente. Porque palavras eram tentativas de controle da existência, que por ser absurda e absoluta não podia ser só palavras. Nem mesmo os seres podiam ser só palavras. Como se comunicar então? Ou como escrever palavras em um papel e ter a certeza de que vão ler o que ela quis dizer?
Era melhor deixar as páginas em branco.

Introdução de um trabalho entregue para história do teatro. Ele foi seguido por uma capa e folhas em branco. Ao final das folhas, um epitáfio:

EPITÁFIO: “Página em branco onde eu escrevo. Único espaço de verdade que me resta”[1]. Página em branco onde me escrevem – e eu me escrevo, único espaço de verdade que me resta. Ou restava.

[1] SANT’ANNA, Affonso Romano de. A implosão da mentira.

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