Se lembrou repentinamente de duas falas. A primeira que tinha ouvido de um médico (que tinha mais de monstro que de médico) aos seus oito anos. A segunda que tinha dito em um de seus momentos de desespero aos 11 anos. Haviam lhe dito que podia ter um enfarto aos 22 anos e morrer. E havia se dito que se vivesse até os 22 anos, viveria o dobro do que vivera até o momento.
Era um dia após ter feito 23 anos. E ela continuava lá, com o reumatismo (causa da visita ao médico) cada vez menor. Ela estava lá, graduada, empregada, formada, com registro profissional na carteira, diploma universitário, CPF, título de eleitor, declarando o IR (nesse ano pela primeira vez). E mais, ela estava lá, concursada. Sim, funcionária pública, com direito a carteira assinada, vale transporte, vale refeição e FGTS.
Por ironia talvez ela tinha as duas garantias mais almejadas: o funcionalismo público e a carteira assinada no mesmo emprego. Por ironia ou por uma mudança na política de contratação de servidores estatais. Não importa. O fato é que tinha. E era verdade também que era empregada, funcionária pública de carteira assinada na mesma universidade pela qual era graduada, licenciada e possuidora de um diploma universitário cuidadosamente guardado em um envolope.
Invejada e almejada, a menina contava com um salário fixo todo o mês e mais alguns bônus, provenientes a alguns destes títulos anteriormente citados. Mas talvez a ironia se escondesse por aí. Porque ela insistia em achar irônico. Profissionalizada pela Universidade para trabalhar com gente, profissional da Univerdade para trabalhar com números. Formada na Universidade para criar, formatada na Universidade para repetir.
De novo repentinamente, se lembrou da promessa que se fez aos 11 anos. Dar um jeito de prolongar a sua vida, quando fizesse 22, até os 44, depois até os 88, e até mais, porque ela queria viver bastante. E com 23 anos e um nó na garganta, pensou que ela tinha sim morrido um pouco. Morrido porque ela não queria ser concursada, empregada e declaradora de IR. Ela queria ser mais. Tinha até os 22 anos, vivido para alimentar e viver de suas paixões.
Mas tinha se prometido que ia prolongar a vida, multiplicá-la por 2, por 2 e por mais, porque ela queria viver bastante. Nunca lhe tinha ocorrido sobreviver bastante. Sobre viver... Viver apaixonada. Brega? Pode ser. Ela até concordava que era radical. Mas ela queria transbordar, seus títulos, seu emprego, sua espera pelo fim de semana, sua falta de prazer das oito as cinco. Relembrou um de seus antigos textos: tinha que brincar de inventar novos futuros. Não, tinha que brincar de inventar novos presentes.
É, feliz aniversário...